René Descartes — Discurso do Método (Dissertações em Prova Oral na Universidade do Porto)
Dissertações num exame oral (Universidade do Porto) que durara três tardes seguidas:
– Boa tarde, meus amigos! – exclamara o professor com um leve sorriso.
– Boa tarde - responderam os examinandos propostos para aquela tarde.
– Todos estão conscientes daquilo que fizeram na prova escrita de Filosofia Moderna? - interrogara o Professor com delicadeza. - Sabem que tiveram nota positiva, pois de contrário não seriam chamados a exame oral, não é verdade? - questionara com alguma satisfação. Depois, de modo mais assertivo e com maior autoridade, reforçara o seu raciocínio: - Mas também sabem que, em relação a esta cadeira, nenhum aluno será dispensado da prova oral, logo, deverão considerar que há uma razão filosófica que deverá ser alcançada para que a nota final corresponda à média ponderada das classificações.
De seguida, convidara os alunos a sentarem-se em círculo, para que, em conjunto e respeitando a ordem a partir daquele que começaria em primeiro, produzissem um diálogo sobre o filósofo René Descartes e a sua obra "O Discurso do Método".
Acomodara-se na cadeira com as pernas estendidas e com as mãos atrás da nuca, olhara -os de relance e apontara para um aluno, dizendo:
– Comece a falar sobre as Regras do Discurso do Método e o colega seguinte continuará com a sua exposição quando eu ordenar. Julgo que todos entenderam o modo de procedimento? – interrogara de modo objetivo e com a autoridade de cátedra. Entretanto, calara-se, fechara os olhos formando uma imagem de quem parecia estar mais a dormitar do que a avaliar o conhecimento de alguém.
Com este gesto de serenidade fizera-se silêncio até começar a ouvir-se o primeiro examinando, que, com algum nervosismo, começara por dizer que (vi) o mérito da filosofia cartesiana foi o de se ter apresentado, pela primeira vez, como um esforço sistemático para clarificar as condições lógicas da função teórica ou cognitiva da razão e a sua consequente aplicação à investigação da verdade. Muito embora aceite inicialmente que "a razão é naturalmente igual em todos os homens", essa capacidade de distinguir o verdadeiro do falso só ganha autonomia quando o seu trabalho crítico se apoiar em regras lógicas fundamentais, "porque não basta ter o espírito bom, é preciso aplicá-lo bem". Daí a importância que o pensador atribui ao método na constituição do conhecimento e na fundamentação da sua unidade. Depois, para concluir, passou a enunciar as Regras do Discurso do Método, (vii) a começar pela Primeira Regra, a regra da Evidência Racional, que diz o seguinte: "nunca devemos aceitar como verdadeira qualquer coisa, sem a conhecer evidentemente como tal; isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; não incluir nos meus juízos nada que se não apresentasse tão clara e distintamente ao meu espírito que não tivesse nenhuma ocasião para o pôr em dúvida". A Segunda Regra, a regra da Divisão, que consiste em "dividir cada uma das dificuldades que tivesse de abordar no maior número de parcelas que fossem necessárias para melhor as resolver". A Terceira Regra, a regra da Combinação, que se baseia em "conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, gradualmente, até ao conhecimento dos mais compostos, e admitindo mesmo certa ordem entre aqueles que não se prendem naturalmente uns com os outros". E, por último, a Quarta Regra, a regra da Enumeração, que pressupunha "fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais que tivesse a certeza de nada omitir".
Terminada esta exposição e quando o mesmo aluno se recompunha para responder a outra possível questão, o professor manteve-se na mesma posição mas ordenando que o aluno seguinte demonstrasse como foi que Descartes concluiu a Primeira Regra.
Sobre esta demonstração, o aluno começara a sua exposição, dizendo o seguinte:
– O modelo racionalista de Descartes começa por questionar e examinar a validade do conhecimento que temos do Mundo. Interroga-se acerca da sua origem ou fundamento. Tem a pretensão de encontrar conhecimento verdadeiro e não apenas provável, por isso, começa por duvidar que se conheça algo como verdadeiro até encontrar um tipo de conhecimento que seja válido para todos e para sempre, isto é, universalmente válido. Para percorrer o seu caminho de investigação formula argumentos semelhantes aos usados pelos céticos, que afirmam que "os nossos sentidos são, por vezes, enganadores"; "aquilo que chamamos conhecimento pode não passar de um sonho"; "mesmo que não estejamos a dormir, podemos estar alucinados". Esta investigação é apoiada na dúvida que segue um caminho ou método, sendo por isso uma dúvida metódica e, em consequência, o seu ceticismo ser metódico e tornar-se numa estratégia inicial para pôr à prova a validade de todo o conhecimento, na tentativa de encontrar uma certeza. Ao colocar a questão se "existirá alguma coisa acerca da qual possamos ter a certeza", chega ao fundamento da Regra da Evidência com a primeira certeza de que para pensar precisa de existir. "Se duvido, se sonho, se estou a ser enganado, devo existir para poder duvidar, sonhar e ser enganado – Cogito, ergo sum – penso, logo existo."
Depois das explicações dadas por estes examinandos, o professor moveu-se na cadeira, abriu os olhos e, com a mesma formalidade, procurou aliviar a tensão dos alunos, exclamando com alguma deferência:
- Até agora, estão a portar-se bem, vamos lá ver como vão terminar! – E continuou, dizendo a propósito das exposições: – Já agora que foram capazes de demonstrar as regras do Discurso do Método e como Descartes chegou à existência do Eu pensante (res cogito), proponho-vos que me demonstrem como chegou às ideias claras e distintas, nomeadamente à ideia e existência de Deus, podendo para o efeito continuar o aluno seguinte.
Depois, voltou a fechar os olhos e a manter-se na mesma atitude de silêncio e com a mesma posição na cadeira.
De pouco servira o efeito do elogio anterior, já que chegara a vez de prestar provas aquele que iria começar naquele momento a prova mais longa e mais dolorosa de toda a sua formação como aluno. Durara cerca de sete horas e ocorrera em três tardes seguidas, com a sua desistência na terceira tarde, por exaustão e por não sentir capacidades físicas nem psíquicas para poder continuar, pois, ao que parece, se não fora este facto, o exame não teria terminado naquela tarde.
Um pouco nervoso pela espera da sua vez, começara a exposição pela questão da ideia e existência de Deus, para passar depois à síntese sobre as ideias claras e distintas:
– "Ao refletir sobre o Eu pensante, Descartes descobre, entre as ideias nele existentes, uma ideia clara e nítida de um ser perfeito, a ideia de Deus. Conclui que esta ideia só pode provir de um tal ser perfeito e que este ser não pode ser apenas uma ideia, mas tem também de existir como ser autónomo. "Aquilo que eu concebera muito clara e distintamente é verdadeiro." "Trazendo isto no espírito e refletindo sobre o facto de que a dúvida me assalta, compreendo que a minha existência não é perfeita. Porque vejo claramente que é uma perfeição muito maior conhecer, do que duvidar. Mas de onde aprendi a pensar em alguma coisa mais perfeita que eu próprio? Obviamente de alguma natureza que tem, dentro de si, todas as perfeições de que eu possa fazer ideia - numa palavra, Deus. Somente aquilo que é perfeito pode ser atribuído a Deus. Não pode haver imperfeição nele. A dúvida, a inconstância, a tristeza, a cólera, o ódio, não são atributos de Deus, mas qualidades cuja ausência nos faria mais felizes. Isto é, são qualidades imperfeitas, a marca da humanidade e não da divindade. Deus é perfeito, quer dizer, infinito, eterno, imutável."
Ouvida esta explicação, o professor manifestou concordar, mas acrescentara que seria necessário desenvolver mais alguns aspetos filosóficos naquela questão, e uma vez já ser bastante tarde, continuariam, ele e os colegas ainda não examinados, na tarde seguinte e à mesma hora. Aos outros examinandos reforçou o elogio, propôs-lhes uma classificação positiva e deu por terminado o exame de cada um.
No dia seguinte, continuava para este aluno a viver-se o tempo de maior tormento, pois julgara que a sua análise filosófica não fora suficientemente aceitável, quiçá pela incompletude, como dissera o professor, ou até por algo de errado que não descortinara durante a exposição. Voltara para casa, comera muito pouco, pegara nos livros e apontamentos e só parara de rever as matérias quando a mulher o chamara por já ser muito tarde para se deitar e o achar já muito exausto.
Na tarde do dia seguinte, apresentaram-se a exame apenas dois alunos, os restantes faltaram (sabe-se lá porquê!). O professor mandou-os sentar e com alguma cortesia perguntou quem queria começar primeiro. Como no dia anterior o professor dissera que seria conveniente desenvolver alguns aspetos filosóficos que teriam faltado na exposição sobre a ideia e a existência de Deus, em conformidade às ideias claras e distintas, resolvera este já sofrido aluno propor-se como primeiro a falar, na tentativa de melhorar a resposta dada no dia anterior.
– Sr. Professor, gostaria de começar a desenvolver um pouco mais a questão colocada na tarde de ontem sobre as ideias claras e distintas, julgo poder melhorar alguns aspetos que evoquei – dissera o aluno olhando-o com veemência e humildade.
– Muito bem, estamos de acordo, pode começar a sua exposição! – exclamou o professor com a voz ainda mais doutoral.
Sem mais demora, António começara, citando Descartes:
– "É claro e distinto o que se impõe imediatamente e por si só ao espírito. E tendo notado que nada há no 'eu penso, logo existo' que garanta que digo a verdade, a não ser que vejo claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei que podia admitir como regra geral que é verdadeiro tudo aquilo que concebemos muito claramente e muito distintamente."
Dito isto, olhou de forma expectante para o professor e sintetizou com o seguinte:
– Refletindo nestas afirmações, poder-se-á dizer que a evidência cartesiana é puramente intelectual e o ato da razão ou do espírito que apreende diretamente a verdade será a intuição. Sendo assim, também se poderá concluir que Descartes chega às ideias claras e distintas através da Razão e pela via da Intuição.
E depois, para reforçar, volta a citar Descartes:
– "Chamo claro o conhecimento que está presente e manifesto a um espírito atento; distinto, o conhecimento que é de tal modo preciso e diferente de todos os outros, que só compreende em si o que aparece manifestamente àquele que o considera como se deve"; "tudo o que eu concebo claramente e distintamente sobre o que quer que seja é verdadeiro, e pode ser tido como tal".
Terminada esta observação, não lhe ocorrera mais nada sobre a questão, pelo que ficou em silêncio à espera do que diria o professor, julgando ter melhorado as respostas anteriores. E, embora não recebesse um não de modo direto, também não recebeu um sim sem reservas, pois, antes de passar para o aluno que faltava examinar, exaltara alguns aspetos positivos da exposição que ouvira, sem deixar de dizer que a mesma não tinha sido suficiente para a compreensão da questão.
Entretanto, passara ao aluno seguinte, propondo-lhe que falasse da moral cartesiana, o qual começou de imediato a expor as quatro regras da moral provisória de Descartes:
– Primeira (viii): "obedecer às leis e aos costumes do meu país, conservando firmemente a religião na qual Deus me deu a graça de ser instruído desde a infância e conduzindo-me em tudo o mais segundo as opiniões mais moderadas e mais afastadas do exagero que fossem geralmente aceites ou postas em prática pelos mais sensatos com quem teria de viver";
Segunda: "ser o mais firme e mais resoluto que pudesse nas minhas ações e, uma vez que me tivesse decidido, não seguir menos firmemente do que as seguiria, se fossem muito seguras, as opiniões mais duvidosas. Nisto estou a imitar os viajantes que, perdidos em alguma floresta, não devem errar andando de um lado para o outro e menos ainda parar, mas sim andar sempre o mais direito possível numa mesma direção, e não modificá-la, por frouxas razões, ainda que de princípio só o acaso tenha determinado a sua escolha: porque, dessa maneira, se não chegam exatamente aonde desejam, pelo menos chegarão finalmente a algum lado, onde verosimilmente estarão melhor que no meio da floresta";
Terceira: "procurar sempre antes vencer-me a mim próprio do que vencer a fortuna e modificar antes os meus desejos do que a ordem do mundo; e, geralmente, habituar-me a acreditar que, afora os nossos pensamentos, nada há que esteja inteiramente em nosso poder, de maneira que depois de ter procedido o melhor possível, em relação às coisas que nos são exteriores, tudo o que impede que sejamos bem-sucedidos é, em relação a nós, absolutamente impossível";
Quarta: "para conclusão dessa moral, resolvi passar em revista as diversas ocupações que os homens têm nesta vida, para procurar escolher a melhor; e, sem nada dizer das dos outros, pensei que o melhor que tinha a fazer era prosseguir naquela em que, de momento, me encontram, isto é, empregar toda a vida a cultivar a razão e a avançar, o mais que pudesse, no conhecimento da verdade, seguindo o método que me tinha imposto".
Analisadas estas máximas e a reflexão que desenvolvera o aluno, o professor limitara-se a dar por concluído o exame e a propor-lhe uma classificação positiva; no entanto, ao António voltara a repetir que seria necessário aprimorar a questão por ele desenvolvida, pelo que deveria continuar o exame na tarde seguinte.
Ao ouvir estas palavras, António apressara-se a sair da faculdade, embora o passo marcasse um andar doentio e a vontade estivesse toldada de tristeza e alguma vergonha.
Quando entrou em casa não dissera nada que lamentasse a situação, apenas que teria de continuar a estudar, pois não sabia o que faltava para o professor decidir. Pouco comera e pouco dormira para estudar outros conteúdos que melhorassem a sua exposição, já que precisava de passar sem repetição de exame, uma vez que trabalhava e estudava e o esforço necessário era imenso.
No dia seguinte, com as forças muito diminuídas e num sentimento psicológico muito baixo, cumprimentara o professor, fizera uma breve exposição e, sem esperar que ele lhe voltasse a dizer para continuar, pediu desculpa e dissera-lhe que já não podia mais, preferia desistir e até reprovar, pois já não tinha forças para prosseguir. O Professor olhara-o com um sorriso de alegria, dizendo-lhe, comprometido:
– Oh! homem, já podia ter dito, ficamos então por aqui! – exclamou o professor propondo-lhe uma classificação positiva e perguntando-lhe se estaria bem assim.
Ficara atordoado com o que ouvira, ficara tão desnorteado com a alegria de ter passado que, emocionado e com lágrimas nos olhos, saíra do gabinete a correr e a gritar de satisfação:
– Passei, passei! – exclamara vezes sem conta e sem sentir por quem passava, enquanto corria para fora da faculdade.
Contudo, sem guardar qualquer mágoa, nem saber o porquê desta longa prova, continua a lembrar que este caso foi determinante no fortalecimento psicológico para os obstáculos que se seguiram, mas que se arrependera bastante de não ter pedido uma classificação melhor.
Bibliografia
vi. Lourenço, Luís e Lourenço, Manuel. "Filosofia 12.º ano". Porto Editora, p. 200 – Geneviève Rodis – Lewis, "Descartes e o Racionalismo", Col. Substância Rés Editora, págs. 7 e 8.
vii. Lourenço, Luís e Lourenço, Manuel. "Filosofia 12.º ano". Porto Editora, p. 201 – Descartes, Discurso do Método - as Paixões da Alma, Clássicos Sá da Costa, págs. 17 e 18.
viii. Descartes (2008). "Discurso do Método - Meditações Metafísicas", Coleção Os Grandes Filósofos – Prisa Innova S.L. Madrid, Espanha, págs. 87 a 92.
Macedo Teixeira, "Caminho de Luz e Sombra", Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 108 a 117.