Saber Pensar... É Necessário!

"Aquele a quem Nosso Senhor deu o talento de escrever, escreva como quem reza. " - Padre Américo.

Macedo Teixeira

Ainda mal nos tínhamos acomodado na tasca do ti' Manel e já a sua ira começara a revelar-se:

- Vocês sabem lá pensar! Nem sequer sabem correr, quanto mais pensar!... E haverá quem procure o saber, nesta aldeia? Se calhar preferem viver na ignorância?!...

Essa é boa!... Ainda estou a pensar no que disse aquele palerma!... Mas quem pensará ele que é? Se calhar anda a pensar que é um médico! Um médico como aqueles que tratam dos males da cabeça, os doentes mentais!...

Hum!... cá para mim aquele patife, com a sua léria, quis insultar toda a gente!... Então, eu não sei pensar?! Serei um ignorante ou um atrasado mental?

Ora, se eu fosse um ignorante, não saberia fazer nada e, se fosse um atrasado mental, não andaria por aí à solta, com certeza que já me teriam internado num manicómio!

Isso... de com falinhas mansas estar a chamar-nos malucos é que eu não admito a ninguém!... Sempre me desenrasquei na vida, sempre soube como viver através do trabalho e da minha habilidade e não precisei de muita escola! Tenho ganhado dinheiro para sustentar a família, não roubo nada a ninguém, sou honrado e trabalhador, por isso não sou nenhum burro, sei pensar e sei fazer as coisas; os burros é que não sabem!... Sim, esses é que não sabem, não sabem pensar, nem sabem fazer nada por eles mesmos, é preciso carregá-los e guiá-los pelo caminho para nos ajudarem! Mas infelizmente não são só as alimárias que não sabem pensar, coitadinhas!.. Há por aí tanto burro em forma de gente que que só sabem dizer mal dos outros, e eu nem para bestas de carga os queria.

Para apanhar o fio da meada, interrogara sem hesitar:

- Que está para aí a dizer, amigo Pedro?! Que bicho é que lhe mordeu, para estar assim tão zangado?!

- Deixe-me cá... amigo João: quando a gente ouve da boca de alguns palermas certas afirmações de malcriadez, até fica com suores frios e a falar sozinhos...

Num instante, seguira-se um arrazoado de lamentações que, sem esperar mais perguntas e já um pouco mais calmo, o homem começara a contar o que lhe acontecera:

- Oh, amigo João, não é que hoje, nas primeiras horas da manhã, resolvi passar pela casa do povo para saber novidades da Previdência. Entretanto, ao chegar às proximidades da porta da entrada, reparei que estavam juntos vários amigos que eu já não via há algum tempo, estando com eles uns cavalheiros que eu não conhecia. Parei e saudei-os com um cumprimento de mão bem apertada; pois eu sempre me soube dar ao respeito, pensando sempre que, onde estiver um amigo, também nos merece consideração e respeito quem estiver com ele.

Mas fique já a saber, amigo João, que embora seja com mágoa o que eu lhe digo, que antes eu tivesse sido malcriado e não tivesse parado nem cumprimentado ninguém; pois não me tinha incomodado ao ouvir certas palermices de cavalheiros que não sabem comportar-se nem ter respeito por ninguém.

Inquieto, tentara apanhar o fio da meada e interrogara sem hesitar:

- Mas, o que foi que esses cavalheiros disseram, que foi assim tão grave!?

- Eu explico melhor:

Um desses cavalheiros que falava com os meus amigos, cuja relação de amizade eu nem cheguei a descobrir, dizia ter aprendido muito na escola, principalmente quando estudara na Universidade.

Porém, a certa altura da conversa, começou a dizer que a maior parte das pessoas era ignorante e que na nossa aldeia também não havia ninguém que soubesse pensar.

Quando ouvi esta blasfémia, para não ficar como os meus amigos em silêncio e dar azo ao dito de que "quem cala consente", intervim imediatamente:

- Ora, ora... eu não sei a quem é que o cavalheiro quer chegar com esse tipo de conversa! Mas essa de dizer que na nossa aldeia são todos uns ignorantes e ninguém sabe pensar, é que eu não lhe admito, e se os meus amigos não se importam da desonra com as palavras, isso é lá com eles, mas comigo, isso é que não!..

E sabe, meu amigo Pedro, que aquele cavalheiro, não se sentindo completamente satisfeito com a ofensa que já tinha feito a todos nós, voltou-se diretamente para mim e de rajada, vociferou:

- Mas você acha que sabe pensar? Você nem sequer sabe correr, quanto mais pensar!...

A remoer estas palavras indesejáveis, amansara lentamente a expressão num certo lamento moral:

- Oh, amigo João, mas para que é que eu parei no caminho e não segui a direito. Parei para respeitar com cordialidade as pessoas e afinal acabei por ouvir aquele palerma a passar-nos um atestado de ignorantes e de atrasados mentais.

Entretanto, com o eco deste lamento produzira-se um ambiente propício à compreensão da expressão que causara tanta perturbação e discordância.

- Olhe que se calhar não será tanto assim, amigo Pedro: Ao que parece essa pessoa não teve intenção de o magoar e muito menos de o julgar incapaz. É verdade que poderia ter sido mais explícito, mas decerto que ele não se estava a referir a nada do valor mental e muito menos a qualquer perturbação.

Esta probabilidade aduzida nesta altura não o acalmara e fizera-o crispar-se num sentimento negativo mais acusador:

- Ora, ora, balela é o que isso é, amigo João! Não ponha água benta nessa criatura, esse cavalheiro não tem desculpa, foi malcriado comigo!

- Bem, eu não quero de maneira nenhuma contrariá-lo e muito menos pretender desculpar alguém quando se comporta com má educação. Mas se me permite continuar a dizer o que entendi dessas palavras, eu...

Sem esperar que o amigo deduzisse a anuência, incentivara-o ao diálogo:

- Sim, sim, amigo João! Pode falar, que eu estou a escutá-lo!

- Pois bem, tolerando o facto de o cavalheiro não ter sido mais explícito nas palavras que proferira, que por dever lhe competia sê-lo, pois não chega fazermos perguntas ou afirmações, é necessário também elucidarmos as pessoas, especialmente quando nos dirigimos a alguém. Contudo, não depreendo categoricamente no sentido da expressão que a pessoa a que se refere tenha porventura querido ofendê-lo, pondo em dúvida a sua sanidade mental, pois eu também julgo que a maior parte das pessoas da nossa aldeia ou de outra terra qualquer não sabe pensar bem, quer dizer, não aprenderam a pensar corretamente, não aprenderam a pensar através das leis do pensar com correção, num pensamento válido e verdadeiro.

- Ó amigo João, eu já vi que consigo também não adianta: o amigo é crente nas falinhas mansas das pessoas, mas eu não acredito; para mim isso são balelas, pois nós somos como qualquer animal: quando nos tratam mal, reagimos, pois lá diz o ditado que "quem cala consente".

- Não seja assim, senhor Pedro, você sabe que eu o respeito, que fico triste quando você está triste, fico feliz quando você está feliz, acreditamos um no outro, e olhe que nós não somos nenhuns sábios!

- Tem razão, amigo João, eu exaltei-me. O nosso respeito é muito mais forte do que qualquer querela.

- Vê... como o senhor lá chegou?

- Como, não entendo?

- Pois, se o nosso respeito e a consideração são mais fortes do que cada um de nós, então isso quer dizer que há algo que nos supera, e se o respeito é algo que nos supera, então quer dizer que deveremos procurar saber o que nos está a levar à discórdia!

- Não estou a entender a sua lógica!

- Eu explico:

Sabe? Os homens foram descobrindo e chegaram à conclusão de que não chegava estudar só a Natureza para descobrir a Verdade; descobriram que também era preciso conhecerem o Homem, conhecerem as suas capacidades e saberem como melhorá-las, para comunicar numa linguagem correta e com um pensamento correto.

- Está a dizer-me que aprenderam a ler?!

- Isso mesmo! E não só... Eu explico melhor:

Não é verdade que o Homem é único, e que fica feliz quando os outros o entendem bem?

- Sim, é verdade!

- E não é verdade que o todo o homem fica ainda mais feliz quando sente que essa satisfação se alargou aos amigos?

- Sim, é verdade, mas continuo a não entender aonde o amigo João quer chegar!

- Então se é assim, pela mesma ordem de razões, poderemos concluir que quando os amigos ficam descontentes, ele também ficará descontente?!

- Sim, com certeza!

- Mas não deixa de lhes ter amizade?

- Não!

- Então imagine algo simples:

Quando os seus amigos estão consigo e chega alguém que também é amigo de alguns e se junta, o senhor fica contente?

- Sim!

- E se eles, além disso, participarem no diálogo?

- Fico ainda mais contente!

- E se eles saírem e nem sequer se despedirem?

- Fico triste!

- E porquê?

- Porque os respeito incondicionalmente, não posso exigir que todos compreendam, mas confesso que na amizade me sinto um verdadeiro homem!

- E isso só será para si, ou espera que eles procedam também com amizade para os outros?

- Será para mim e também para os outros; não só eu, como os meus amigos e como os demais semelhantes!

- Pois bem, sendo assim poderemos concluir das suas palavras que a amizade se manifesta na nossa sensibilidade, e não apenas em nós, mas também nos outros, e que esta amizade vai do mais simples para o mais complexo, e como seres únicos que somos, somos também ignorantes quando desconhecemos?

- É verdade!

- E já agora, na nossa modesta opinião, poderemos concluir com razão que procuramos não nos desrespeitar nos nossos juízos, pelo valor da nossa amizade e que ela nos faz descobrir também os nossos limites.

- Quero acreditar no que diz, amigo João! Pelos vistos você parece ter razão! A nossa amizade ajuda-nos a resolver os nossos problemas, a descobrir melhores soluções.

- Sendo assim, poderemos concluir que o homem não só aprendeu a ler, como aprendeu que era necessário saber pensar bem, para não ferir a amizade do outro nem ser incorreto nos seus juízos.

- É verdade!...

- E acha que só saber ler será suficiente? Não será também necessário saber escrever e falar gramaticalmente bem?

- Sim, estou de acordo... Também é preciso sabermos as regras gramaticais para falarmos e escrevermos com correção!

- E o que é que fazemos quando não sabemos aplicar os tempos verbais?

- Vamos a uma gramática para saber conjugar os tempos!

- E então como poderemos nós chamar a essa passagem de conhecimento?

- Talvez a passagem da ignorância ao saber...

- E como foi que procedemos?

- Procedemos pela procura!

- E acha que todas as pessoas da nossa aldeia farão isso, ou escreverão e falarão como lhes vem à cabeça?

- Penso que alguns falarão e escreverão como lhes vem à cabeça!

- Ora, sendo assim, e se o amigo Pedro estiver de acordo comigo, então nem todas as pessoas falarão nem escreverão bem?...

- Certamente que sim!...

- Então o mesmo se passará com o saber pensar, isto é, nem todos saberão pensar bem, porque nem todos aprendem e estudam, quando precisam, as leis do pensar lógico e verdadeiro. É que, assim como os homens descobriram a gramática para falarem e escreverem bem, também descobriram a lógica e suas leis para saberem pensar com correção, num pensamento válido e verdadeiro. Ora, quando o homem não procura conhecer a gramática, é ignorante, porque não sabe e não procura. Está a ver, amigo João, o que certamente o homem lhe quis dizer?

- Quer dizer: então quando alguém não procura o saber, é ignorante?

- Isso mesmo! Pois se nós somos sempre ignorantes, porque não conhecemos tudo, deixamos de o ser quando procuramos o saber, o que não se passará com aquele que permanece no desconhecimento e não procura o saber. Com isso, adquire o estatuto de ignorante, porque não procura saber como fazer melhor, julgando que já sabe tudo.

- Estou a ver, amigo João... Ao que parece, talvez tenha feito um juízo errado...


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